sábado, 13 de julho de 2013

Tabu (Tabu, 2012)

Engraçado que os dois filmes de maior sucesso de crítica na 36ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo foram dos ex-críticos de cinema Miguel Gomes, com este Tabu (co-produção brasileira), e Kleber Mendonça Filho, com seu brasileiríssimo O Som ao Redor. E é mais engraçado ainda ver a relação que coincidentemente esses dois filmes tem com o passado, claro que de maneiras distintas, mas denotando presentes ecos de um passado colonial em suas abordagens. Reduzindo, diria que há uma relação passado-presente que nos intima obrigatoriamente a refletir a nossa história. Assim, se partimos do princípio de que somos resultado de um processo histórico, assim como nós pode-se dizer que o cinema também é resultado desse processo. Logo, Gomes traça uma linha tênue entre cinema atual com o cinema do passado, através de uma narrativa simples -  e é na sua simplicidade que o filme se torna grande - porém não para homenageá-lo, como afirma em entrevistas, mas para criar seu próprio filme. Aliás, fazer filmes, ele diz, é a única homenagem que se pode fazer ao cinema.

Gomes encontra seu ponto de referência em, quem ele vai eleger o melhor cineasta da história, F. W. Murnau (1888-1931), cineasta do expressionismo alemão, mas que também realizou filmes nos Estados Unidos. Em Tabu, a relação com dois filmes particulares de Murnau são mais evidentes: Aurora (1927) e Tabu (1931). Este último tem, inclusive, relação direta não só pelo título como pela divisão da história (Paraíso e Paraíso Perdido) e pelo tema amoroso.

Invertendo, Paraíso Perdido é a primeira parte no filme de Gomes. Assim começa, então, com a personagem Pilar (Teresa Madruga) dentro de uma sala de cinema assistindo a história, narrada em off de maneira insólita pelo próprio diretor, sobre um melancólico e triste explorador português que segue numa expedição na África para tentar esquecer de sua amada que morrera. Mas este não consegue seguir com a vida e a entrega para um crocodilo ao jogar-se num lago. Mais tarde aparece, narra Gomes, uma imagem de um melancólico e triste crocodilo ao lado de uma estranha mulher. Um casal que, por um pacto misterioso qual nem a morte pode interferir, se tornaram inseparáveis. Pilar, sozinha no cinema, parece emocionalmente envolvida com a história.

Por meio de uma narrativa idílica, este prólogo brilhante - uma das coisas mais belas que o cinema português já produziu - consegue sintetizar muito bem o filme: Tabu vai entrelaçar a nostalgia (a volta de um cinema simples e imagético), a história colonial portuguesa e o tema mais catártico (o amor, ou o amor frustrado).

Dezembro de 2010 e Pilar mora, sozinha, num apartamento em Lisboa. No início do longa tenta arranjar uma companhia de uma jovem polonesa, mas esta lhe dá um cano (por um motivo óbvio: em plena juventude, quer aproveitar a capital portuguesa com a maior liberdade possível). Ao ver Pilar num segundo momento se envolvendo com jovens em causas sociais e posteriormente num terceiro se emocionando diante da tela do cinema (que não vemos o que se passa, mas ouvimos a música de fundo - Be My Baby das Ronettes - que traz certa nostalgia) dá para dizer que ela é aquela que busca a juventude, que sente saudade da mocidade. E é esse fio, provido da memória, que vai solidificar todo discurso de Gomes.

A vizinha de Pilar, Aurora (Laura Soveral, na primeira parte), mora com sua empregada negra Santa (Isabel Muñoz Cardoso). Devido a senilidade, a religiosa e preocupada com o próximo, Pilar, dá assistência a Aurora que, falida, delira histórias surreais em um cassino. Já no leito de morte escreve um nome no papel: Gian Luca Ventura (Henrique Espírito Santo, na primeira parte). Santa e Pilar vão em busca do sr. Ventura para saber quem é esse tal homem que Aurora nunca mencionou a ninguém. Encontrado, Ventura inicia a segunda parte do filme, Paraíso, contando às duas senhoras a história de amor que viveu há décadas passadas com Aurora no Monte Tabu (numa África portuguesa que existe apenas no filme - esta parte foi gravada em sua maioria em Moçambique).

Tabu em seus 118 minutos nos remete aos clássicos, sim, àqueles em preto e branco e com formato de tela 4:3 (ou 1,33). Ao voltar para o passado, na África colonial, contando uma história de amor trágica (remetendo a Tabu de Murnau), Gomes com certo saudosismo nos remete a filmes daquela época. As histórias eram bastante simples, mas o cinema detinha uma força que prendia e energizava o público. Talvez é o que ele e algumas pessoas sintam falta hoje: onde está aquela magia do cinema que com tão pouco fazia espetáculos maravilhosos? Hoje os filmes-espetáculos se dão por obras extremamente psicológicas, com alto grau de complexidade e várias reviravoltas. Gomes com Tabu mostra que não é preciso muita cor nem muita explosão; como Aurora que prefere a pintura de uma paisagem do que duma pintura abstrata moderna, o português é simplista, é tudo preto no branco.

Em Paraíso, Ventura narra a história a partir de sua memória, e, assim, a segunda parte não contém diálogos, apenas sons diegéticos. Isso faz com que usamos mais a imaginação, forçamos mais o imagético. Talvez um diretor normal do cinema atual mostraria o homem do prólogo sendo devorado pelo crocodilo, usando muito vermelho e uma trilha sonora de fundo à la John Williams. Mas aqui em Tabu estamos falando de Miguel Gomes, um diretor fora da curva, que foge da normalidade. Talvez ao brincar com a fantasmagoria, com uma sensibilidade ímpar, ele até deixa a realidade um pouco de lado. Acho que nos está chamando para a ficção pura, para o sonho e para as possibilidades (vide aquele plano dos contornos nas nuvens formando animais).

Mas nesta segunda parte, Paraíso não é bem assim paraíso. Depende do ponto de vista de cada um. E aí Gomes acerta mais uma vez. O roteiro - assinado por Gomes e sua parceira Mariana Ricardo (Aquele Querido Mês de Agosto) - causa reflexão ao trabalhar com antíteses e opostos bastante naturais. Ao confrontar campo x cidade, juventude x velhice, lirismo poético da imagem do passado x realidade dura e cinzenta do cotidiano, metrópole x colônia, vai causando certo tipo de incômodo no espectador (perceba que até o tempo é diferente: na Lisboa atual se conta os dias, na África de outrora se conta os meses - é como se o tempo e o espaço de alguma maneira se confrontassem também).

Os simbolismos e as ambiguidades, bem como em seu longa anterior, também se fazem presentes (não sabemos se a tribo africana do prólogo começa a dançar por homenagem ou por alívio de o português explorador ter se matado). O resultado é que Tabu encanta enquanto decanta. E se o texto que abre o filme Aurora de Murnau diz "Esta canção do Homem e de sua Mulher é de nenhum lugar e de todos os lugares; é possível escutá-la em qualquer lugar e em qualquer hora. Pois onde quer que o sol nasça e se ponha, seja no tumulto da cidade ou sob o céu aberto da fazenda, a vida é muito semelhante; às vezes amarga, às vezes doce.”, este certamente cabe em Tabu. Aurora de Gomes é aquela que provou do doce e do amargo, que viveu na cidade e na fazenda, e que, por fim, nasceu e morreu. Ela é uma representação, ao mesmo tempo que não está em nenhum lugar, está em todos. É possível vê-la. Basta estar de olhos bem abertos como os de um crocodilo.


Ficha técnica
Direção: Miguel Gomes
Roteiro: Miguel Gomes e Mariana Ricardo
Elenco: Teresa Madruga, Laura Soveral, Ana Moreira, Henrique Espírito Santo, Isabel Muñoz Cardoso, Carloto Cotta e Ivo Müller
Produção: Luís Urbano e Sandro Aguilar
Distribuição: Espaço Filmes

Trailer

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