domingo, 2 de fevereiro de 2014

Alguns comentários #2

No meio do caminho tinha uma pedra 
tinha uma pedra no meio do caminho 
tinha uma pedra 
no meio do caminho tinha uma pedra. 

Nunca me esquecerei desse acontecimento 
na vida de minhas retinas tão fatigadas. 
Nunca me esquecerei que no meio do caminho 
tinha uma pedra 
tinha uma pedra no meio do caminho 
no meio do caminho tinha uma pedra.

                                                            Carlos Drummond de Andrade (1902-1987)

Filme político? Não sei mais usar essa expressão, ela é escorregadia demais. Envolve dinheiro e poder? Filme político. Critica o "capitalismo"? Filme político. Trata de personagens que ocupam cargos públicos ou trata de eleição para algum cargo político? Filme político. Discursa ideologias esquerdistas ou direitistas? Filme político. As variáveis são tantas e se desdobram em outras tantas que não me tomo por seguro ou convencido a usá-la.

Mas cá estamos nós diante de dois filmes que tratam de alguns assuntos como dominação e progresso - do capitalismo. Um Toque de Pecado, do chinês Jia Zhang-Ke (Em Busca da VidaO Mundo), jorra sangue na tela para documentar ficcionalmente uma China cada vez mais violenta. Já O Menino e o Mundo, de Alê Abreu (Garoto Cósmico), conta uma história lúdica e ao mesmo tempo fatalista.

Ganhador de melhor roteiro na última edição do Festival de Cannes, o novo de Jia (boatos que é seu último) transcende qualquer tipo de crítica ou relato-denúncia. Aliás, sua intenção passa longe disso a partir do momento em que seu foco está mais em enquadrar e capturar a violência do que qualquer outra coisa. Na China de Jia Zhang-Ke já se nasce violento: não existe saída, só há a espera e é essa a maldita pedra no meio do caminho. As relações humanas não progridem tanto quanto as relações de troca (progresso do capital), logo os personagens de Um Toque de Pecado estão apenas esperando a hora pelo confronto. O filme é dividido em quatro episódios, mas que nunca se separam de fato - estão todos interligados como se não houvesse divisão e sim apenas uma mudança de olhar (personagem), e Jia filma os espaços e esses personagens com a maior elegância possível. 

No início de O Menino e o Mundo a pedra aparece, colorida, ele a olha, vemos uma aventura, um ciclo que passa, e retornamos a ele. A construção do novo filme de Alê Abreu se dá por pequenas experiências em pequenos ou grandes espaços. O diretor e roteirista se preocupa e se interessa mais em primeiro nos fazer embarcar em uma aventura (livre, possível, ilimitada) do que criar um discurso. A linha narrativa que se monta quando juntamos as peças (as pequenas experiências que passeiam o menino) já é parte do espectador. O espectador projeta ali o que ele quiser.

Claro que o diretor deixa sua marca, colocando imagens reais em meio as imagens em papel (coloridas e desenhadas com originalidade, diga-se) para não deixar nada muito solto. Não posso deixar de comentar do símbolo da águia que mostra a dominação estadunidense dentro de um Brasil já conflituoso. Tudo parece meio triste e melancólico, principalmente porque - e essa é a minha projeção - o pai do protagonista abandona a família que mora no campo para trabalhar na cidade e isso leva o menino a sair pelo "mundo" para procurá-lo. E por isso O Menino e o Mundo é primeiro antes uma busca, uma experiência de sentidos, do que um discurso pleno. Parece que o menino está querendo procurar o verdadeiro Brasil antes de se tonar parte dele (a trilha sonora e as músicas colaboram para isso).

Aos olhos do menino não há julgamentos. Não há interpretação correta dos signos e dos símbolos. Então, se nem ele julga, deixemos nós isso de lado também e vamos embarcar pela experiência de sentir o que é esse Brasil real, mas não deixando também o sonho de lado. O sonho que representa a possibilidade, a liberdade, o ilimitado - isso que perdemos quando deixamos de ser menino.

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